Escrevo este texto ainda sob o impacto das primeiras imagens que mostram o mar de lama que se formou após o rompimento de uma barragem de rejeitos da mineradora Vale em Brumadinho, Minas Gerais. As imagens me remeteram imediatamente ao cenário pós-colapso da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, também em Minas, na tarde de 5 de novembro de 2015. A cor escura do barro manchando a paisagem, a lama engolindo tudo pelo caminho, deixando visíveis apenas telhados semidestruídos. O mar de lama uma vez mais.

O desastre de Fundão deixou 19 mortos, atingiu mais de 30 municípios de Minas e do Espírito Santo e poluiu com rejeitos de mineração o Rio Doce, um dos mais importantes do Brasil. A lama percorreu 660 quilômetros pelo rio até chegar ao Oceano Atlântico. No momento em que escrevo, a Vale informa que, no caso de Brumadinho, há “possibilidade” de vítimas.

Enquanto aguardamos os desdobramentos e informações mais precisas, não há como deixar de refletir sobre o cenário político-institucional que permite a ocorrência desse tipo de desastre. Investiguei a fundo o caso de Fundão, como repórter e depois para escrever o livro Tragédia em Mariana. A investigação mostrou que o colapso da barragem era uma tragédia anunciada. O processo de licenciamento foi um faz de conta, atipicamente rápido para uma estrutura da complexidade de uma barragem, cheio de falhas e omissões.

Uma vez construída, a barragem de Fundão operou sob fiscalização praticamente inexistente, bem como as demais no estado, pela total falta de estrutura do poder público. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União, feita a partir de um pedido do Ministério Público de Minas Gerais, já constatara, em 2012, o sucateamento do principal órgão fiscalizador, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Segundo a auditagem, os funcionários do órgão em Minas Gerais, não tinham carros, aparelhos de GPS, mapas atualizados nem imagens de alta resolução com as coordenadas geográficas dos locais a serem vistoriados. Faltavam até coletes para os fiscais.

Na época do desastre, o DNPM tinha 985 servidores em todo o Brasil para todos os serviços do órgão. Desse total, apenas cinco eram especializados em geotecnia, formação necessária para fiscalizar a contento barragens de rejeito. Estavam cadastradas no DNPM 663 barragens de mineração (450 em Minas), sendo que 28 eram consideradas de alto risco.

É óbvio que a conta não fecha. Não custa lembrar ainda que, na época do desastre, a legislação brasileira nem sequer exigia das empresas que instalassem sirenes para alertar trabalhadores e povoados próximos em caso de emergência. Com esse cenário, não é difícil imaginar que as mineradoras fazem, basicamente, o que bem entendem.

Logo após o desastre de Mariana, o Ministério Público de Minas Gerais fez a campanha Mar de Lama Nunca Mais, que recebeu 60 mil assinaturas da população dando suporte a um projeto de lei que tornava o processo de licenciamento de grandes empreendimentos mais rigoroso. O projeto foi engavetado e os deputados mineiros aprovaram uma mudança na legislação exatamente no sentido contrário, afrouxando as regras.

No livro, publiquei um levantamento feito pela ONG Observatório Ambiental, mostrando que, dos 77 deputados estaduais mineiros eleitos em 2014, 59 (80%) haviam recebido doações de campanha de empresas mineradoras (na época, o financiamento empresarial ainda era permitido).

Não surpreende, portanto, que desastres como esses se repitam e reacendam nossa indignação. Brumadinho mostra que o Brasil não aprendeu nada com a tragédia de Mariana, suas 19 vidas perdidas e sua espantosa rota de destruição. Aliás, passados três anos, a lama continua no leito do Rio Doce, os povoados não foram reconstruídos, a maioria das famílias não foi indenizada e o processo criminal se arrasta lentamente na Justiça Federal, sem perspectiva de um desfecho breve para o caso e a devida punição dos responsáveis pelo maior desastre socioambiental do Brasil e o maior do mundo em barragens de mineração.

O novo governo federal tem na sua agenda a mudança na legislação de licenciamento. Espero que este desastre sirva, ao menos, para levar a uma reflexão mais profunda sobre as propostas em pauta, todas no sentido de facilitar o licenciamento para as empresas. A Constituição Federal estabelece que todos têm direito ao meio ambiente saudável e equilibrado. Já passou da hora de as empresas entenderem que é possível conciliar desenvolvimento econômico com responsabilidade social e ambiental.

Quando estive em Mariana, ainda como repórter de TV, entrevistei o então coordenador da força-tarefa do MPMG, Carlos Eduardo Ferreira Pinto. Ele fez uma pergunta que ficou martelando minha cabeça nesses três últimos anos: “Quantos empreendimentos como esse [Fundão] ainda temos no estado de Minas Gerais e no Brasil?”. Pode ser que, com mais este desastre, comecemos a encontrar a resposta.

Cristina Serra é jornalista, escritora e autora do livro Tragédia em Mariana.

Fonte: Metrópoles