RIO- Menos de uma hora antes de o sol nascer no dia 3 de dezembro de 1967 na Cidade do Cabo, África do Sul, o coração de uma pessoa morta bateu pela primeira vez no peito de outro ser humano. O primeiro transplante cardíaco bem-sucedido foi realizado pelo médico sul-africano Christiaan Barnard, então com 44 anos de idade. O feito, até então considerado inconcebível por muitos e rodeado de polêmicas de ordem técnica e moral, transformou o cirurgião, da noite para o dia, em uma estrela.
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O paciente transplantado viveu só 18 dias a mais — a morte foi por infecção pulmonar. Mas a notícia da proeza alcançada se espalhou como fogo, incentivando muitos centros mundo afora a colocarem a técnica em prática. No Brasil, por exemplo, a primeira cirurgia do tipo aconteceu apenas cinco meses depois da de Barnard — foi a quinta do mundo e a primeira da América Latina. Hoje, são feitos no planeta uma média de 4.500 transplantes de coração todo ano, e estima-se que o Brasil termine 2017 com 370 cirurgias deste tipo, cem a mais do que a média anual do país. O desafio para o futuro é aumentar o número de doadores.
— Hoje, 42% das famílias brasileiras, infelizmente, não autorizam a doação de órgãos. Esse cenário tem que mudar — clama Fabio Jatene, diretor da Divisão de Cirurgia Cardiovascular do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, que é hoje o sétimo centro no mundo que mais realiza transplantes cardíacos.
O Hospital Grote-Schuur, na Cidade do Cabo, onde o transplante inédito foi realizado exatos 50 anos atrás, foi transformado em museu. Nele, há salas com reconstituições de momentos-chave da histórica operação, que levou cerca de cinco horas, como se as cenas estivessem congeladas.
O paciente era Louis Waskansky, um homem branco de 53 anos que havia sido internado com problemas cardíacos graves, e a equipe médica lhe deu no máximo duas semanas de vida. O hospital chegou a receber um doador negro, mas o chefe do setor de Cardiologia convenceu Barnard a não tentar realizar esse transplante, já que a África do Sul estava no auge do Apartheid, regime de segregação entre brancos e negros. Logo depois, porém, apareceu Denise Darvall, jovem branca de 25 anos que havia morrido atropelada.
Embora o coração da moça tenha alcançado pleno funcionamento no peito de Waskansky, o sistema imunológico dele ficou muito enfraquecido com as drogas utilizadas para evitar a rejeição, o que levou a uma infecção fatal. Apenas um mês depois, Barnard fez o segundo transplante de coração e, desta vez, com grande sucesso: o dentista Philip Blaiberg viveu um ano e sete meses com o novo coração.
REJEIÇÃO, A GRANDE VILÃ
De lá para cá, quase nada mudou em relação à técnica operatória para transplantar um coração. A grande diferença foi que aperfeiçoamos a forma de evitar a rejeição, grande vilã da época.
— A técnica em si é simples. Mais fácil do que fazer uma ponte de safena, por exemplo — diz o cardiologista Euclydes Marques, que participou do primeiro transplante cardíaco do Brasil, em 1968, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). — A grande evolução foi o surgimento, entre os anos de 1970 e 1980, de novas drogas muito mais eficazes contra rejeição.
Em 1968, foram realizados 102 transplantes em todo o mundo. No entanto, na década de 70 praticamente todos os centros interromperam a realização dessas cirurgias, por conta do altíssimo índice de rejeição e infecção. Apenas na década seguinte, com os novos medicamentos, retomou-se a prática.
Marques lembra que, ainda no final dos anos 60, era extensa a lista de questionamentos: quanto tempo um coração pode ficar fora do corpo?; É ético retirar o coração de alguém que teve morte cerebral?; O transplante funciona da mesma forma em animais e em pessoas? Nenhum cardiologista tinha resposta para essas perguntas.
— Esses eram problemas que rondavam nossas reuniões. Já há algum tempo se fazia transplante de rim e córneas, mas mexer com um órgão ímpar como o coração era considerado diferente — recorda-se Marques, hoje aos 82 anos e pesquisador aposentado do Incor. — Havia pressão religiosa e moral sobre como lidar com isso, mas estávamos num momento da pesquisa cardiológica em que sabíamos que o transplante ia acontecer, mais cedo ou mais tarde.
‘CORRIDA PELO OURO’
Essa certeza era tão grande que três cirurgiões americanos disputavam para ver quem alcançaria o feito primeiro. Norman Shumway — que fazia, de forma precursora, experimentos com transplantes de coração em cães desde 1958 —; Richard Lower; e Adrian Kantrowitz.
— Os três já haviam anunciado que fariam o transplante, e, para muitos da comunidade médica, ficou por muito tempo a sensação de que o Shumway é quem deveria ter feito — conta Noedir Antônio Stolf, que também participou do primeiro transplante brasileiro.
Muitos acusam o sul-africano Christiaan Barnard de ter agido de forma oportunista em busca de fama. Mas, segundo Stolf, o fato é que seus transplantes mostraram mais sucesso do que o de seus concorrentes.
— Barnard talvez tivesse estudado menos, mas foi mais arrojado. Shumway fez cães viverem muito tempo com novos corações, mas o primeiro transplante em humanos que ele fez, três dias após Barnard, levou à morte do paciente com graves complicações. Então não acho que Barnard foi oportunista. Não são só os anos de experiência que definem o preparo.
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Fonte: O Globo