Depois de 20 anos de ocupação no Afeganistão, os Estados Unidos estão deixando o paÃs. Mas antes mesmo da operação de retirada ser concluÃda, os talibãs já assumiram o controle da capital, Cabul. A velocidade dos acontecimentos provocou uma avalanche de informações no noticiário internacional. Mas por que os Estados Unidos decidiram colocar fim à incursão militar? E quem são os talibãs? Por que parte da população busca deixar o paÃs conforme revelam as imagens que rodaram o mundo, mostrando um aeroporto caótico?
O Talibã se tornou conhecido como um grupo religioso fundamentalista na primeira metade da década de 1990 e foi organizado por rebeldes que haviam recebido apoio dos Estados Unidos e do Paquistão para combater a presença soviética no Afeganistão, que durou de 1979 a 1989, em meio à Guerra Fria. A chegada ao poder se consolida em 1996, com a tomada de Cabul.
Uma vez no controle do governo, o Talibã promoveu execuções de adversários e aplicou sua interpretação da Sharia, a lei islâmica. Um violento sistema judicial foi implantado: pessoas acusadas de adultério podiam ser condenadas à morte e suspeitos de roubo sofriam punições fÃsicas e até mesmo mutilações. O uso de barba se tornou obrigatório para os homens e as mulheres não poderiam ser vistas publicamente desacompanhadas dos maridos. Além disso, elas precisavam vestir a burca, cobrindo todo o corpo. Televisão, música e cinema foram proibidos e as meninas não podiam frequentar a escola.
Ataque às torres gêmeas
A ocupação dos EUA foi uma reação aos ataques à s duas torres gêmeas do World Trade Center, arranha-céus situados em Nova York. Dois aviões atingiram os edifÃcios em 11 de setembro de 2001, levando-os ao chão e causando quase 3 mil mortes. Os EUA acusaram o Talibã de dar abrigo ao grupo terrorista Al Qaeda, que assumiu a autoria do atentado. Em outubro de 2001, tiveram inÃcio as operações militares no Afeganistão. As ruas de Cabul foram tomadas em dois meses. Em 2004, eleições foram realizadas no paÃs e, em 2011, as forças norte-americanas anunciaram a morte de Osama Bin Laden, lÃder da Al Qaeda.
Volta dos talibãs
A volta ao poder dos talibãs foi consolidada no domingo (15): o presidente afegão Ashraf Ghani deixou o paÃs e o controle do palácio presidencial foi assumido pelos rebeldes. Tudo ocorreu sem que houvesse resistências.
Diante do cenário, os EUA precisaram acelerar a conclusão do processo de saÃda do paÃs, em curso desde o ano passado: uma megaoperação para tirar à s pressas diplomatas e cidadãos norte-americanos foi montada pelas tropas norte-americanas, que ainda controlam o aeroporto. No entanto, imagens que ganharam repercussão internacional mostraram um caos no local, com milhares de civis desesperados para deixar o paÃs se aglomerando junto aos aviões.
De acordo com Fernando Luz Brancoli, pesquisador e professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante os 20 anos de ocupação, ocorreu uma ampliação das liberdades civis e alguns setores econômicos se desenvolveram, mas o perÃodo também foi marcado por diversas denúncias de corrupção. “Houve grupos polÃticos que se beneficiaram desse momento, que ganharam prestÃgio, ganharam dinheiro. Em uma escala menor, tivemos mulheres entrando no mercado de trabalho, ocupando algumas funções governamentais, frequentando as escolas. Mas fica no ar até que ponto essas transformações serão mantidas”, disse.
Nos primeiros discursos, os talibãs têm buscado se apresentar mais moderados. Nessa terça-feira (17), um canal de televisão estatal do Afeganistão levou ao ar o pronunciamento de um porta-voz do grupo. Enamullah Samangani garantiu uma anistia geral para todos e disse que a população deveria regressar à normalidade com confiança. Zabihullah Mujahid, um outro representante do grupo, concedeu uma coletiva à imprensa onde reafirmou que não haverá vingança com quem trabalhou para o antigo governo ou para forças estrangeiras. Ele também disse que as mulheres poderão trabalhar e devem participar da estrutura de governo.
Apesar dos acenos, pesquisadores manifestam ceticismo com uma moderação. “Fico parcialmente desconfiado. A forma de governar do Talibã está muito pautada em práticas de violência e controle. Então, considerando seu histórico, até que ponto eles conseguem pensar a organização do paÃs de outra maneira? Vamos ter que esperar pra ver, mas acho que essa moderação é meramente discursiva”, diz Brancoli.
O cientista polÃtico João Paulo Nicolini Gabriel, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chama a atenção para o uso das redes sociais pelo Talibã, onde divulgam indÃcios de corrupção. “O que eles querem mostrar nesse primeiro momento é que o governo de Ghani não representava a população”.
O comportamento da população retrata o receio popular. As vias públicas estão mais vazias e parte do comércio mantém as portas fechadas. A vida das mulheres já sofre alguns impactos: muitas estão com medo de sair de suas casas. Em público, homens e mulheres voltaram a usar vestimentas afegãs tradicionais. Não se sabe se centros de estética em Cabul voltarão a funcionar. Cartazes publicitários com mulheres estão sendo apagados das ruas, como mostra uma imagem que se tornou viral nas redes sociais.
Mas apesar das imagens com milhares de pessoas reunidas no aeroporto em busca de uma oportunidade de sair do paÃs, Brancoli avalia que a população não possui uma visão homogênea e não há uma repulsa generalizada contra os talibãs. Segundo ele, os moradores das áreas rurais são indiferentes ou apoiam o Talibã e a elite urbana não é tão numerosa.
“Tem que lembrar que o Afeganistão é um paÃs majoritariamente rural. E nas áreas rurais, a população olhava para o governo central de forma muito desconfiada. Muitos consideravam um governo corrupto que não atendia aos seus interesses. Uma das explicações para o avanço tão rápido do Talibã seria, em parte, esse apoio da população local. Não houve grandes resistências nas partes periféricas. E quando chegou em Cabul, onde se esperava uma resistência um pouco maior, o próprio exército parecia que já tinha desistido de lutar e não tinha interesse no conflito. O presidente fugiu”, pontua.
O governo de Ghani, apoiado pelos Estados Unidos, nunca teve 100% de domÃnio sobre o território do paÃs e os talibãs sempre controlaram algumas áreas. De acordo com João Paulo, o cenário atual revela a incapacidade da polÃtica norte-americana de alcançar certos objetivos, o que fez com que a ocupação tenha se arrastado por mais tempo do que se esperava. “Reformularam até o sistema eleitoral do paÃs e não conseguiram garantir uma estabilidade. Ghani tinha dificuldades de manter popularidade. E justamente por isso havia tantos soldados norte-americanos lá”.
Processo de saÃda
Segundo João Paulo, o processo de retirada das tropas foi influenciado em alguma medida pela opinião pública nos Estados Unidos. “Os gastos militares começaram a ser mais criticados depois da crise econômica de 2008. Há um longo debate, inclusive na academia, sobre a necessidade da intervenção no Afeganistão, o que também pressionava por um plano de evacuação”.
A retirada gradual das tropas norte-americanas foi pactuada no ano passado em um acordo bilateral firmado entre o então presidente Donald Trump e o Talibã. O processo deveria ser concluÃdo até maio desse ano. O grupo afegão se comprometeu a não dar abrigo a terroristas da Al Qaeda e do Estado Islâmico.
Eleito, o presidente Joe Biden assumiu a sucessão de Trump e manteve o processo em andamento, mas alterou o prazo: prometeu encerrar a ocupação até setembro e posteriormente antecipou para agosto. À medida que as forças dos EUA deixavam o paÃs, ocorreu um rápido avanço das forças talibãs sobre as mais diversas cidades.
A velocidade com que os talibãs retomaram o poder gera repercussões polÃticas nos EUA com grupos de oposição criticando a condução da saÃda do Afeganistão pelo governo de Joe Biden. No domingo (15), em um pronunciamento público, o secretário de Estado, Antony Blinken, recusou comparações com o fim da Guerra do Vietnã em 1975, quando rodaram o mundo cenas da cidade de Saigon em que se viam diplomatas desesperados para deixar a embaixada dos Estados Unidos diante da aproximação dos vietcongues. “Isto não é Saigon. Fomos ao Afeganistão há 20 anos com uma missão em mente: lidar com as pessoas que nos atacaram em 11 de setembro, e essa missão foi bem-sucedida”, disse Blinken.
Para Brancoli, a rápida recuperação do poder pelos talibãs coloca em cheque os bilhões de dólares investidos pelos Estados Unidos no treinamento do exército afegão. “Os armamentos deixados pelos Estados Unidos vão cair nas mãos dos talibãs. Tem até uma curiosidade: eles tinham lá os Super Tucanos, que são aeronaves construÃdas no Brasil junto com os Estados Unidos. Agora o Talibã tem acesso a eles. Não sei se vão saber pilotar”, observa.
Nessa segunda-feira (16), o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden culpou a relutância do Exército afegão em lutar contra o Talibã. Ele avaliou que nunca existiria um bom momento para retirar as tropas do paÃs. “A verdade é: isso aconteceu mais rápido do que esperávamos. Então, o que aconteceu? Os lÃderes polÃticos do Afeganistão desistiram e fugiram do paÃs. Os militares afegãos desistiram, à s vezes sem tentar lutar”, acrescentou.
O que irá acontecer daqui em diante dependerá também dos desdobramentos de geopolÃtica, isto é, de como os talibãs irão dialogar com o restante do mundo. “Estamos vendo algumas mudanças importantes. O grupo que foi derrubado pelos Estados Unidos há 20 anos está agora virando governo e inclusive sendo reconhecido como governo por alguns paÃses, como é o caso da China. Durante muito tempo, nas discussões sobre a geopolÃtica da região, se debatia o papel dos Estados Unidos, da Rússia, da Inglaterra. Pela primeira vez, precisamos entender qual será o papel chinês e qual vai ser a polÃtica chinesa para a região. Já está claro que os chineses vão negociar com os talibãs”, observa Brancoli.
Fonte: Agência Brasil