Franciele Ferreira Barros é diarista, tem seis filhos e mora de aluguel em uma casa na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. As faxinas em uma igreja metodista garantem o sustento da família. Ou melhor, garantiam: quando a quarentena se instalou na Capital em razão do coronavírus, o templo precisou fechar. Autônoma, Franciele ficou sem renda. E o desespero bateu à porta alguns dias depois, quando o gás deu sinais de que estava no fim. Foi aí que ela deparou com o grupo Boleto +1, no Facebook, uma iniciativa de mulheres dispostas a ajudar quem está sofrendo com a falta de trabalho na pandemia.

– Pedi ajuda para comprar o gás, não tinha dinheiro. Também precisava de alimentos e fraldas, pois tenho uma menina de dois anos que ainda usa. A ajuda para o gás foi bem rápida, uma mulher pediu o número da minha conta e deu o dinheiro. No mesmo dia, uma moça também me ajudou com R$ 100 para comprar alimentos – conta Franciele. – Essa mobilização, para mim, foi muito importante, pois são mulheres ajudando mulheres. A gente sabe quantas são sozinhas e passam por várias situações de vulnerabilidade.

A iniciativa nasceu de uma conversa nas redes sociais proposta por Janaína Kremer, 47 anos, professora universitária e atriz de Montenegro. Em seu perfil, ela revelou o desejo de criar uma rede de suporte para mulheres nesse momento de isolamento. A amiga e diretora de fotografia Lívia Pasqual, 35 anos, abraçou o projeto e, no dia 16, o Boleto +1 estava no ar.

– A dívida tem corpo. O papel do grupo é dar corpo, nome e voz a essas pessoas. Outra característica é aproximar experiências para torná-las visíveis e colocá-las como um problema comum. Também é um passo para criação de políticas públicas – sugere Lívia.

Em uma semana, o grupo já alcançava mais de 20 mil membros, com pessoas de todo o Brasil. Os relatos e as ajudas se multiplicaram, Janaína e Lívia incluíram outras administradoras para dar conta do número de mensagens e estabeleceram as regras. Quem participa pode postar a foto do boleto que precisa ser pago e explicar sua situação, assim como está autorizado a solicitar alimentos e outros itens. Há ainda a opção de usar o espaço para divulgar seu trabalho.

– O grupo também é aberto para homens que queiram ajudar, sim. Mas focamos no apoio às mulheres por serem o grupo mais vulnerável em um contexto de pandemia – opina Lívia.

Franciele Ferreira Barros / Arquivo pessoal
Os seis filhos de Franciele estão em casa com a mãeFranciele Ferreira Barros / Arquivo pessoal

Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 45% dos lares do país são chefiados por mulheres, o que representa mais de 30 milhões de brasileiras. E a desigualdade no mercado de trabalho também impera: em média, a mulher ganha menos de 80% do total do salário do homem.

Há ainda aquelas que acabam abandonando as atividades profissionais para se dedicar somente ao lar após o nascimento dos filhos. Como Thallya Vargas Alexandre, 18 anos, de Taquari. Agora, com o marido desempregado e a família em isolamento, até os bicos para gerar renda ficaram inviáveis. No grupo, ela conseguiu quitar uma conta de água de R$ 162,68.

Thallya Vargas Alexandre / Arquivo pessoal
Thallya e sua família moram em TaquariThallya Vargas Alexandre / Arquivo pessoal

– A pessoa que me ajudou não tem contato comigo, nunca conversamos, ela é de São Paulo. A ajuda veio muito rápido, ela comentou ali na postagem e pagou. Foi questão de poucas horas. Eu ia ficar sem água, não posso ficar sem por causa do meu bebê – diz Thallya.

Já Carolina Caurio Flores, 25 anos, precisou usar o dinheiro das passagens de ônibus na compra de itens no supermercado para garantir que não faltariam mantimentos neste período de quarentena – a jovem trabalha em um call center da Capital. Por meio do grupo, conseguiu um auxílio de R$ 20 para cobrir o furo no orçamento:

– Uma moça prontamente disse que ia me ajudar e depositou o valor. Acho muito importante ajudar as pessoas do jeito que a gente pode. Mas, no grupo, tem muita gente pedindo ajuda e pouca para dar suporte. A maioria tenta auxiliar de alguma forma, mas ainda fica muita gente precisando. São tempos difíceis.

Para Tamires Lopes Mesquita, 26 anos, a pandemia agravou a apertada situação financeira da família. Mãe há quatro meses, Tamires não está trabalhando, e o marido é autônomo, atuando como barbeiro. A internet é imprescindível para divulgar o trabalho do companheiro na cidade onde moram, Pelotas, mas a conta ia vencer e não havia dinheiro para quitar o boleto:

Tamires Lopes Mesquita / Arquivo pessoal
Tamires pediu ajuda no grupo Boleto +1Tamires Lopes Mesquita / Arquivo pessoal

– Resolvi postar porque estava muito preocupada em não ter dinheiro pra essa conta, e fui ajudada em menos de uma hora. Apenas pediram para que eu colocasse o boleto nos comentários e uma senhora me informou que pagaria. Não acreditei porque é algo que eu nunca havia visto. Além do auxílio financeiro, fica aquele sentimento bom de que tu tens alguém com quem contar, sabe? Que não estás completamente sozinha no mundo.

E quem se sensibilizou com a história de Tamires foi a artista visual Graça Craidy, 68 anos. Convidada por amigas para participar da iniciativa, ela se sentiu impelida a ajudar logo que teve contato com as histórias postadas ali:

– Quando me dei conta do que era, fiquei comovida, uma iniciativa fantástica, incrível. São as pessoas saindo das suas vidas, das conchas, e pensando no sofrimento de outras mulheres. O que enxergamos por ali é um imenso universo de mulheres se ajudando, e também nos damos conta de quanta miséria existe por aí. E quanto precisam da nossa ajuda.

A estudante de Medicina Ana Cláudia Alves da Silva, 27 anos, também foi impactada pelo grupo e usou dos recursos disponíveis para ajudar. Ficou comovida com a história de uma mulher com filhos, sem família e muitas necessidades financeiras. Na opinião de Ana Cláudia, a rede do Boleto +1 vai além do dinheiro em si:

– Essa coisa da união feminina é muito bonita, dá uma força pela sensação de pertencimento a algo, que tu não estás sozinha, que tens parceiras. É a importância da coletividade e do feminino na nossa sociedade, que tem uma base muito machista e patriarcal, que nos ensina que as mulheres são rivais desde que nascem. Essa ajuda mostra uma irmandade, um poder de “eu não estou sozinha, tenho onde me apoiar”.

Pertencimento digital, acolhida real

A criação de redes de apoio em momentos de crise é uma das reações esperadas por quem enfrenta situações de impacto como a epidemia da covid-19. Acaba servindo como um fator de proteção em cenários incertos, explica Marina Corbetta Benedet, psicóloga e doutora em psicologia pela UFSC:

– É o sentimento que prevalece quando nos sentimos úteis auxiliando alguém, ou quando sinto que posso ser auxiliado nesses momentos de crise. Essa questão da mobilização em prol da solidariedade, nem que seja trocando uma palavra, conversando, para questões financeiras, de trabalho, é importante, traz segurança.

Graça Craidy / arquivo pessoal
Graça Craidy ficou sensibilizada ao ver tantas mulheres pedindo ajuda na internetGraça Craidy / arquivo pessoal

E uma rede de mulheres pode gerar ainda mais empatia na hora de ajudar. Para a psicóloga, se reconhecer na história de outra pessoa influencia diretamente no processo de sensibilização.

– É mais fácil me solidarizar com alguém que passa por uma situação que já vivi. É até mais fácil me abrir nessa vulnerabilidade pensando no grupo de mulheres, porque consigo identificar que a outra pessoa também já passou por isso e vai entender.

É um diferencial esses grupos serem só femininos. Os homens podem ajudar, mas terão um olhar diferente sobre a dificuldade – ressalta Marina.

Essas iniciativas também suscitam debates sobre a necessidade de políticas públicas nesse momento de isolamento, avalia Denise Pimenta, doutora em antropologia social pela USP:

Ana Cláudia Alves da Silva / Arquivo pessoal
A estudante de medicina Ana Cláudia acredita que ações femininas ajudam a criar um rede de suporteAna Cláudia Alves da Silva / Arquivo pessoal

– O grupo age quando o Estado se retira e não está atendendo às demandas. Apesar da sagacidade e do empenho do grupo, muitas estão na mesma situação, de falta de renda, não há como suprir essa falta do poder público. O grupo aponta para a ferida e gera uma discussão sobre medidas necessárias.

A antropóloga defende ainda que esses projetos acabam se tornando espaços de pertencimento essenciais para o enfrentamento de situações extremas que atacam fortemente o lado emocional das pessoas:

– Não é só geração de renda, é suporte psicológico, mental, acolhimento. Começa na virtualidade e ultrapassa, gerando pertencimento virtual e uma acolhida real. Às vezes, vejo ali muitas palavras positivas, mulheres se dando força. A ideia que prevalece é de ter a quem recorrer, uma fonte real de apoio.

Outras iniciativas

Deprê Club

A designer Débora Rocha, de Porto Alegre, criou o Deprê Club para enfrentar o momento de isolamento em conjunto com outras mulheres. No grupo do Facebook, elas podem conversar sobre como estão se sentindo e trocar experiências. A iniciativa é voltada principalmente para quem sofre transtornos como ansiedade e depressão.

– Quando começou a pandemia, fiquei muito mal, muito ansiosa, e queria conversar com alguém que tivesse passado por isso. Queria falar só com mulheres sobre isso. O isolamento social é um momento ainda mais delicado para quem tem algum tipo de transtorno – afirma Débora.

Quem tiver interesse em participar, acessar o grupo por este link e solicitar acesso.

Corongajobs

Moradora de Curitiba, Jana Santos criou um documento compartilhado na internet para freelancers de todo o país (mulheres e também homens) oferecerem seus trabalhos. O arquivo funciona como um catálogo nesse momento de crise: há contatos de designers, arquitetos, fotógrafos, tradutores, entre outros. Confira a lista no link: gzh.rs/Corongajobs.