Quando Ricardo Caldas começou a dar aulas de teoria da corrupção na Universidade de Brasília (UnB), em 2005, o tema já não era exatamente uma novidade.
O mensalão, por exemplo, foi revelado em julho daquele ano pelo então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ). A Máfia dos Vampiros, o escândalo Sudam/Sudene e até os Anões do Orçamento ainda estavam vivos na memória.
Passados 12 anos, a corrupção se tornou o assunto preferido do país, com resultados positivos e negativos. Em um bate-papo com o G1, sem fazer juízo de valor ou revelar favoritos, Caldas fez um balanço do período anterior e projetou expectativas para as eleições de outubro.
“Não podemos subestimar o eleitor. Em 2016 [nas eleições municipais], os candidatos envolvidos com esquemas foram bastante punidos, e o eleitor testou nomes novos. Neste ano, deve ocorrer algo semelhante”, diz o economista e cientista político.
Segundo ele, a legislação recente de combate ao mau uso da verba pública se consolidou com avanço, mas ainda é preciso fazer um ajuste fino. “O que precisa fazer é calcular quanto de dinheiro público há naquilo, e como isso pode retornar para a sociedade, dessa ou de outra forma.”
Confira, abaixo, a entrevista com o professor Ricardo Caldas:
TEORIA DA CORRUPÇÃO
G1: O senhor dá aulas sobre teoria da corrupção na UnB há mais de uma década. Nesse tempo, é possível dizer o que mudou no pensamento do brasileiro sobre o tema?
Caldas: A diferença mais importante que eu vejo está na inclusão das novas legislações. A Lei de Transparência, a Lei Anti-Corrupção, a própria Lei de Acesso à Informação. Houve uma alteração de paradigma.
Quando eu comecei a dar o curso [em 2005], o debate da corrupção era uma coisa marginal, fora do eixo, do mainstream. Era um tema secundário. Com esses escândalos, houve um aumento de interesse.
Antes, as pessoas discutiam se era possível combater a corrupção. Hoje, discute-se o limite da Lava Jato. Entende? Hoje, temos um arcabouço para discutir isso. A gente discute a adoção dos métodos, a forma como eles foram incorporados.
G1: Nos últimos quatro anos, vários desses mecanismos vêm sendo contestados. O instituto da delação premiada, a aplicação da Ficha Limpa, o limite da Lava Jato, a anistia ao caixa dois, por exemplo. Faz parte da construção, ou são ataques aos mecanismos?
Caldas: Faz parte do discurso de quem está no poder e quer permanecer no poder. Dizer que não tinha alternativa, que todos faziam é o discurso da corrupção.
Por outro lado, acho que não podemos subestimar o eleitor. Em 2016 [nas eleições municipais], os candidatos envolvidos com esquemas foram bastante punidos, e o eleitor testou nomes novos. Neste ano, deve ocorrer algo semelhante.
É um movimento surdo, mudo, mas que se manifesta nas urnas. Os eleitores vão procurar candidatos que sejam ficha limpa, que não estejam na Lava Jato. O eleitor não tem como influenciar o Supremo, mas faz suas escolhas.
Se o candidato for acusado num debate de recebido recursos ilícitos, de estar na Lava Jato, ele vai sofrer uma penalização do eleitorado. As pesquisas mostram isso, que os líderes de intenção de voto, tirando o Lula, não estão em partidos tradicionais.
G1: Há quem diga que essa onipresença da corrupção em todos os debates é uma “cortina de fumaça”, ou seja, que impede o Brasil de discutir problemas estruturais. Educação, saúde, segurança. O senhor concorda?
Caldas: Discordo. Eu penso que, ao contrário, os candidatos vão ter que apresentar propostas claras. Uma delas vai ser justamente o combate à corrupção. É um item a mais, não é algo que substitui.
Antes, se falava só em saúde, educação e segurança. Agora, é saúde, educação, segurança e combate à corrupção.
O debate não é um fetiche, é uma necessidade. No Brasil, a corrupção saiu de qualquer padrão “aceitável” – no sentido de que não há corrupção zero. É como o zero absoluto da física, não existe, mas é um parâmetro importante. É importante saber se a corrupção está sob controle, ou fora de controle.
SETOR PRIVADO
G1: A gente falou o tempo todo sobre setor público, mas essas operações recentes promoveram, também, uma devassa na esfera privada. Há empreiteiras grandes em recuperação judicial, e/ou impedidas de contratar com governos. Como promover obras nesse cenário?
Caldas: Nenhum governo vai querer, por prazer ou sadismo, destruir suas próprias empresas. As que estão envolvidas na Lava Jato – Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez – competiam, inclusive, no cenário internacional. A pergunta é: qual a solução? O que está sendo feito?
O que tem sido proposto é o acordo de leniência, que é uma delação premiada para a pessoa jurídica. E aí, estamos discutindo o que a empresa está pagando, o que está recebendo, os termos desse acordo. Diz-se que um ou outro acordo foi positivo demais para a empresa, ruim demais pro contribuinte.
As pessoas estão dizendo: “pera aí. Tudo bem que seja competentes e importantes, mas isso justifica o dinheiro público injetado? Qual conta elas devem pagar agora?”.
G1: Em que sentido? O governo assumindo o controle das empresas, por exemplo?
Caldas: Exato. Assumir o controle, ou parte do controle como forma de indenização. A compra da americana Swift [pela Friboi, por R$ 1,4 bilhão], por exemplo. Eles botaram todo o risco, todo o ônus no dinheiro público. Tinham caixa pra comprar, mas usaram o BNDES para isso.
Então, nada mais justo que o setor público exercer as ações de preferência nessa compra – que, na prática, foi o governo que fez. O que precisa fazer é calcular quanto de dinheiro público há naquilo, e como isso pode retornar para a sociedade, dessa ou de outra forma.
CRISE POLÍTICA
G1: Nos últimos anos, a gente passou a ouvir muito a expressão “crise de representatividade”, em referência a uma descrença generalizada com a política. O senhor vê esse fenômeno?
Ricardo Caldas: Eu diria que a crise é mundial, não é só no Brasil. Existe uma discussão no mundo todo sobre a própria função dos partidos como forma de representação. No Reino Unido, surgiu o Partido Independente Britânico (UKIP), que queria uma nova política. Como o sistema eleitoral não favorecia, ele acabou entrando em declínio.
Na França, na Alemanha, foi o contrário, houve muito sucesso. Na França, resultou na vitória do [Emmanuel] Macron. Na Itália, o Cinco Estrelas (M5S) bateu recorde de votação isolada de um partido, agora não se sabe se vai conseguir governar porque o bloco oposto superou a votação. Mas em termos de partido, foi o maior.
O Alternativa para a Alemanha (AfD) queria rediscutir as bases do sistema político alemão, os pilares, conseguiu 15% dos votos. São resultados significativos.
G1: E no Brasil, quem representaria isso?
Caldas: Aqui, há o descrédito dos principais partidos políticos. O próprio PT, que estava no poder até pouco tempo atrás; o MDB, no poder agora; o PSDB, como oposição mais estruturada. Os três foram alvos de denúncias graves, algumas já julgadas, outras em processo.
Eles chegam enfraquecidos à eleição atual, possibilitando a repetição do cenário francês. Há partidos que vêm com baixa representação e, hoje, lideram as pesquisas eleitorais.
G1: A gente também ouve muito o discurso de que a corrupção é “institucional”. Que para chegar lá, é preciso se corromper. O senhor acredita nesse conceito?
Caldas: O sistema, como está dado hoje, funciona com base em corrupção. É o motor. A corrupção é sistêmica, ou o que você chama de “institucional”; é endêmica, porque se espalha por todos os níveis; é cultural, porque a gente trata como algo aceitável; e é histórica, porque vem desde o clientelismo, dos órgãos criados no século passado para o desenvolvimento, e por aí vai.
G1: Essa falha das instituições é sempre apontada como a causa, o centro da crise de representatividade. O problema é o modelo?
Caldas: Essas coisas não são as causas, mas acabam reforçando o funcionamento negativo do sistema. No meu ver, a principal causa é o sistema eleitoral proporcional, muito nocivo.
Não é o excesso de partidos, mas de partidos sem representatividade. Criamos esses partidos de aluguel, partidos-cartório. Isso é uma anomalia, não é essa a função dos partidos.
Eu defendo o voto distrital, que infelizmente, no Brasil, não pegou. A gente ia trocar o Frankenstein atual por um vampiro, um sistema chamado “distritão” que é uma corruptela do sistema verdadeiro.
ELEIÇÕES
G1: E como o senhor vê, no momento atual, tudo que está sendo projetado para as eleições deste ano? A essa altura, dá para tirar algo das pesquisas divulgadas? Ou deve mudar tudo?
Caldas: O problema do cenário brasileiro é que ele é muito instável, mesmo. No caso atual, é difícil saber quem permanece ou não [na disputa], tanto no cenário nacional como no DF. Mas eu não vejo uma grande mudança de atores.
Existe, por exemplo, a dúvida em relação ao Lula. Eu entendo que, com a confirmação [da sentença] no TRF-4, ele já se tornou inelegível. Mas, como nosso sistema eleitoral é fluido, pantanoso, seria possível esticar a campanha ao máximo. É um desgaste muito grande ter um candidato preso.
Acho que os principais já estão postos: Jair Bolsonaro, Marina Silva e Joaquim Barbosa. Pode aparecer algum desses que estão mal nas pesquisas, como o Alckmin, apesar das denúncias recentes.
Fora isso, tem os “outsiders”, os pequenos partidos de esquerda lançando candidatura, mas ainda sem muita base eleitoral. E tem o Ciro Gomes, que vem com um partido estruturado, que não foi tão atingido pelas denúncias da Lava Jato, mas não é exatamente uma novidade.
Acho que pode haver mudança entre esses, mas não vejo o surgimento de novos nomes. A menos que seja para substituir esses aí nas chapas.
G1: Além dessas oscilações nas pesquisas, os candidatos que lideram as intenções de voto ostentam, ao mesmo tempo, grandes índices de rejeição. Essa polarização é um problema?
Caldas: Nós sempre tivemos uma dificuldade de separar direita e esquerda. A novidade da candidatura do Bolsonaro é ter alguém que se diz de centro-direita. Não podemos cometer o erro que se cometeu em 2016, quando deram a Hillary Clinton como vitoriosa nos Estados Unidos, sem entender como o eleitor médio pensa.
Sem entrar no mérito pessoal de cada candidato, nosso sistema em dois turnos estimula esse cenário radical. No primeiro turno, você precisa ficar conhecido, marcar posição. Os candidatos mais novos precisam fazer esse discurso radical, é o que acontece no primeiro turno.No segundo turno, é o oposto: vai-se em direção ao centro. O candidato que marcou posição, que radicalizou, tenta buscar o voto do centro. Foi o que aconteceu com o Lula em 2002, que virou o “Lula paz e amor”, o conciliador.
G1: E qual o papel dos chamados ‘outsiders’ nisso?
Caldas: Há um erro, também, no que vem sendo entendido como outsider. Ele não é, necessariamente, uma pessoa que nunca existiu no cenário, mas alguém que não estava na linha de frente. Que nunca foi um figurão na negociação com o Congresso.
O próprio Bolsonaro, por exemplo, está no quarto mandato como deputado. É um outsider, ou não? A Marina Silva nunca foi presidente, nunca foi do núcleo duro, mas teve poder quando foi ministra. O Ciro, idem. O Flávio Rocha, que é citado como outsider, já se candidatou antes. As pessoas podem “estar” outsiders, por terem perdido esse protagonismo político.
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