A regulamentação do lobby poderia trazer concorrência indesejada a determinados grupos, principalmente financiadores de campanha, que já se beneficiam da prática sem que ela seja regulada.

Para Andréa Gozetto, coordenadora acadêmica do MBA em Relações Governamentais da Fundação Getúlio Vargas, especialista no tema, esta é uma das razões para a falta de vontade para se aprovar uma regulamentação da prática.

Na visão da pesquisadora, quem financia campanha eleitoral no Brasil, antes pessoa jurídica e agora pessoa física, entende que o parlamentar eleito é o representante somente de seus interesses individuais.

“A partir do momento que regulamenta o lobby, qualquer um pode ter acesso a esse representante de forma formal, não somente quem já tem influência”, argumenta.

Andréa é autora do recém-lançado Lobby e Políticas Públicas, em parceria com o pesquisador Wagner Pralon Mancuso, publicado pela editora FGV. Segundo a pesquisadora, outro motivo para que o projeto de regulamentação do lobby não avance é a falta de pressão popular.

“Temos muita potencialidade a trazer luz ao processo decisório, e por conta de interesses específicos de alguns grupos, isso não é feito”, avalia Andréa Gozetto em entrevista ao JOTA.

O lobby já é feito no Brasil em todos os poderes, inclusive no Judiciário. “Quando o Supremo Tribunal Federal convoca uma audiência pública e chama uma entidade para dar opinião, isso é lobby”, argumenta a professora, para quem, no processo civil, a figura do amicus curiae também é uma forma de lobby.

Leia a entrevista na íntegra:

De onde surgiu a ideia de escrever o livro?

Os estudos que existem ainda hoje são específicos de casos concretos. É uma dificuldade muito grande de rastrear. Quando estamos falando de lobby, falamos de uma atividade realizada por pessoas físicas e jurídicas, legal, amparada pela Constituição e feita em todas as esferas de competência.

O lobby existe no Brasil de que maneira?

Lobby é defesa de interesses quando o poder público pode tomar decisões acerca de políticas publicas. Nos EUA, lobby é contato: quando alguém quer falar de algum assunto, ele está fazendo lobby.

É a atividade de levar seu ponto de vista ao tomador de decisão. Se você mandar um e-mail a um deputado, marcar uma reunião, levar suas preocupações sobre algum tema, está fazendo lobby.

Para que efetivamente uma demanda chegue a um tomador de opinião e seja algo tangível, terá de ter algum contato pessoal com ele. Todo mundo defende seus interesses em alguns momentos. Os grupos também, e isso não pode ser visto como ilegítimo, pois o lobby é um instrumento democrático.

Infelizmente, na década de 70, esse termo começa a ser usado de forma errada. Toda vez que aparecia algum escândalo era “lobby”. Hoje, ficou impossível desassociar lobby a corrupção e tráfico de influência, por isso alguns grupos se recusam a dizer que fazem lobby.

A regulamentação do lobby poderia diminuir os problemas de corrupção recentemente descobertos, quando lobistas se relacionavam com o poder público de maneira espúria? Como?

É a única forma de minorar esses problemas. Precisamos parar com a mania de que vai acabar com a corrupção. Temos que criar formas dessa corrupção ser mais difícil, ser arriscada. No Brasil, ela não é arriscada. O Judiciário não funciona, olhe a Lava Jato, cadê os políticos? O dono da Odebrecht foi preso, o Lula está preso, onde estão os outros? O problema não é a legislação, e sim o controle mútuo da lei. A discussão do lobby construiria um mapa decisório muito claro: quem é quem, quem decide o que e como entro e contato com o tomador de decisão.

Vamos imaginar que sou a presidente da associação dos moradores do bairro. Tenho um problema, mas consigo saber quem resolve. No Executivo, a situação é mais grave, já que não há a mínima clareza no processo decisório dentro dos ministérios ou secretarias. Se houvesse, estaríamos melhor.

Outra questão está no cadastramento, que deve ser obrigatório. A partir do momento que você quer falar com algum servidor público, todo o resto tem o direito de saber quem está acessando aquela pessoa.

Assim, uma legislação é bem vinda. Não para gerar mais burocracia, mas que eu possa entrar numa base de dados e ver quem anda falando com o meu deputado, sobre qual tema. Ao ter essa informação, poderei também marcar uma reunião e levar meu ponto de vista.

Quanto mais oculto é esse contato, mais fácil é a corrupção ter espaço. Quanto mais se joga luz nas relações, mais difícil fica corromper. Aposto em registro obrigatório e controle mútuo. Não adianta fazer uma lei super rígida. Lá, eles estão fazendo pessoas que não se registravam a não fazer.

Se é do interesse de todos, por que o Brasil não consegue regulamentar o lobby? De onde vem a resistência?

Estar regulamentado ou não, não impede de que seja realizado. A questão é que a regulamentação permitiria que isso fosse feito por todos. É de interesse da sociedade civil, que não faz pressão para que isso aconteça.

E por que não é regulamentado?

Tem vários fatores, um deles é a falta pressão popular. O maior interessado, que é o cidadão, não faz acontecer. E isso em todos os aspectos. Vemos leis importantíssimas paradas há anos. Sem pressão, eles não decidem. Aqui no Brasil, o Congresso é muito pautado pelo Executivo e pela mídia.

Sempre que alguma lei é prioridade, o Executivo se pronuncia sobre o assunto. Até o momento, com relação ao lobby, não se pronunciou com a força que poderia ter.

Outro ponto: no Brasil, o mandato é muito personalizado. O tomador de decisão, uma vez eleito, se sente dono do mandato. Em um ambiente que não existe essa regulamentação, aqueles que financiaram campanhas, antes pessoas jurídicas e agora físicas, ou as pessoas que compõe a base eleitoral do parlamentar, entendem ele como representante somente de seus interesses individuais.

Assim, a regulamentação traria concorrência indesejada, já que a partir do momento que se regulamenta o lobby, qualquer um pode ter acesso a esse representante, não somente quem já tem influência. Daí a concorrência.

Se a gente ao menos utilizasse a obrigatoriedade da publicação das agendas, que deveria ser obrigatório, mas todo mundo sabe que é uma peça de ficção, já seria um grande avanço. Hoje, para saber com quem meu deputado/senador está falando, eu preciso ter uma fonte dentro do gabinete, ou no Ministério, quando estamos falando do Poder Executivo.

Quais países hoje são referência na regulamentação do lobby e por quê?

Vamos pensar do ponto de vista da transparência das informações, que o lobby é regulamentado para que se possa entender os meandros dos processos decisórios, não como um instrumento de combate à corrupção. Assim, gosto do modelo canadense, que privilegia a informação, e tem uma agência de controle para receber, processar e divulgá-la. Em 2013, se regulamentou no Chile, onde deram mais transparência no agendamento de reuniões dos tomadores de decisão.

Se você entende que é para garantir transparência, esse banco de dados em uma plataforma online, já resolve metade dos problemas. No Brasil, temos uma lei muito avançada, de lei de acesso à informação, que poderíamos utilizar para operacionalizar o lobby, mas isso não é feito. Temos muita potencialidade a trazer luz ao processo decisório, e por conta de interesses específicos de alguns grupos, isso não é feito.

Falta pressão popular. Os grupos que fazem pressão não veem como algo prioritário na agenda.

Como evitar que quem faça lobby sejam só empresários ou representantes de empresas?

Acredito que a única forma de democratizar é basicamente trazer todas as comunidades para as discussões. O problema é lobby ou o processo decisório que é hermético? Os deputados, senadores e suas equipes estão lá, mas você não sabe quem decide o que, como e quando. Quando estamos falando de regulamentação do lobby, falamos da abertura do processo decisório, com maior transparência.

Houve uma iniciativa da FGV em que foram propostos 34 anteprojetos de lei que endereçariam esses principais problemas, entre eles a regulamentação do lobby. O projeto que eu escrevi não regulamenta o lobby, mas sim a interação entre agentes de representação eleitoral e não eleitoral.

Como assim?

As ferramentas estão lá, mas as pessoas não usam. Uma forma de trazer a sociedade civil é usar ferramentas de governo eletrônico. Faço transações de valores altíssimos pelo meu celular, por que não posso informar se sou a favor ou contra determina lei, por exemplo? Por que não se fortalece isso? Porque não quer. O sistema está aí, ninguém quer mudar, e para os setores menos privilegiados serem ouvidos eles devem se organizar melhor.

Uma coisa que queria deixar claro é que, num lobby, dinheiro conta, mas é mais importante recurso político do que dinheiro, ou seja, sua capacidade de mobilizar é um recurso político, e não precisa só de dinheiro para isso. As redes sociais, quando são bem utilizadas, alavancam negócios.

No livro, a senhora desenvolve a ideia de que o lobby ocorre em todos os poderes, inclusive no Judiciário. De que forma isso é feito?

Quando o STF convoca uma audiência pública e chama uma entidade para dar opinião, isso é lobby. O STF tem se mostrado mais aberto a isso. Dentro do processo civil, quando há amicus curiae, isso é lobby. Tem lobby em todas as etapas de políticas públicas.

E de que maneira o lobby está presente nas decisões judiciais, outra tese defendida no livro?

Uma das ações muito utilizadas pelos grupos é o recurso judicial. Você pode recorrer da legislação, dizendo que é inconstitucional. O recurso não termina nunca. Quando se trata de concepção de leis, significa que amanhã um deputado ou senador proponha uma outra lei que pode anular o que está em vigência no momento.

O Judiciário é muito importante porque ele identifica a validade dessa nova legislação. Mas falar sobre lobby no Judiciário é sensível, já que eles não reconhecem que existe, sim, uma influência externa sobre suas decisões. Vai dizer que juiz não lê jornal? Não se encontra com ninguém? Essa coisa da independência judicial vamos combinar, não existe.

Há uma questão preocupante com relação ao amicus curiae: quais os critérios para que um seja autorizado e o outro rejeitado? Quem decide? Só o juiz. É muita discricionariedade. Tem um lado bom e um lado ruim.

Existe essa mística envolvendo o Judiciário, que é intocável. Se são servidores públicos, têm que estar abertos às demandas da sociedade. Eles têm que me receber se a decisão mexe com a minha vida. Quem faz lobby junto ao Judiciário muito bem é o terceiro setor.

Como?

Vi um filme em que contam uma ação meio documental, do Movimento do Sem Teto, no qual a líder está dizendo às pessoas que vai ter uma audiência. Lá, ela sugere que todas as mães vão à audiência com seus filhos, que levem lanche e mexerica, que tem um cheiro horrível, para fazer pressão, ou seja, utilizam táticas de guerrilha. Quando pessoa não tem dinheiro, sobra criatividade.

Recentemente, o Ministério do Trabalho reconheceu o lobby como ocupação. Como a senhora avalia isso?

Essa decisão foi tomada devido à articulação dos profissionais que fazem lobby, que conseguiram o reconhecimento da ocupação. Isso é importante porque não existe nenhum tipo de formalização. Como não há consenso, o lobby é o que cada um que faz lobby acha que é. O que faz um profissional de RelGov é o que ele diz que faz. Agora, sabemos quais são as atribuições do profissional. Há empresas em que a área que faz o relacionamento com o poder público é “assuntos corporativos”. Com o reconhecimento por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, há uma padronização no reconhecimento.

Isso foi muito bem recebido e, a partir do ano que vem, vai ser o único dado fidedigno do tamanho da comunidade, que hoje não temos. Será preciso também incentivar seus membros a solicitar que os registrem na carteira com esse código, pois aí saberemos o número de profissionais.

Agora, a atividade, para ser regulamentada, precisa passar pelo Congresso, e a profissão também. O que se regulamentou foi uma ocupação.

Precisamos mudar a narrativa. Quando se fala em regulamentação, precisamos desassociar de corrupção e tráfico de influência, associar à transparência e accountability.