Conhecida pelo nome de ‘Nos Conformes’, a Lei Complementar nº 1320/2018, aprovada pelo estado de São Paulo em abril, está promovendo uma “mudança de paradigma” – ao menos na visão de advogados, professores e representantes de classe ouvidos pelo JOTA. O Programa de Estímulo à Conformidade Tributária, criado pela legislação, propõe uma abordagem considerada menos contenciosa na relação entre contribuintes e o Fisco paulista, dando tratamento especial às empresas que estão em dia com as suas obrigações tributárias. A mudança, porém, tem gerado desconfiança, e pairam dúvidas sobre o caráter impessoal de uma norma que promete vantagens a certo grupo de empresas.
A Lei Complementar (LC) tenta estabelecer uma série de critérios que visam reduzir a histórica desconfiança entre órgãos fiscalizadores e os contribuintes. De acordo com o texto, a norma é baseada, dentre outros, nos princípios da simplificação do sistema tributário estadual, previsibilidade de condutas e publicidade e transparência na divulgação de dados e informações.
As medidas a serem implementadas pela lei, após regulamentação, devem promover privilégios às empresas que mantém suas contribuições em dia com o Fisco. A principal delas estaria no artigo 5º, que define um sistema de classificação em categorias de risco sobre os contribuintes de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que irão de “A+” a “E”, para separar o tratamento de empresas com aderência ao programa tributário estadual e os devedores contumazes.
Os critérios para a classificação, segundo os incisos I a III, serão as obrigações tributárias e pecuniárias vencidas, a apresentação de documentos, e o perfil dos fornecedores do contribuinte. Às empresas consideradas como exemplares – grupos A+ e A – a lei permite a apropriação de crédito acumulado, renovação de regimes especiais e o acesso ao regime de Análise Fiscal Prévia. Aos devedores contumazes, o artigo 20 garante a inclusão do contribuinte em um “programa especial de fiscalização tributária” e a centralização do pagamento do ICMS devido em um dos estabelecimentos.
Apoio por todos os lados
A construção do projeto contou com participação da classe acadêmica – em especial da Fundação Getúlio Vargas (FGV) . A instituição recebeu advogados e membros da administração pública, como o secretário-adjunto da Fazenda do estado de São Paulo, Rogério Ceron, que é doutorando na casa. “Foi uma construção de fato coletiva, uma reunião de esforços em torno de um ideal comum. Por mais que opiniões e interesses sejam de alguma forma distintos, o objetivo era o mesmo – construir um modelo de gestão tributária moderno, racional e mais eficiente, no estado de São Paulo”, afirmou o secretário-adjunto durante seminário na instituição, no final de abril.
O projeto foi promulgado, na forma de lei complementar, em 6 de abril, um dia antes da data-limite que o então governador do estado, Geraldo Alckmin (PSDB), renunciasse o cargo para concorrer ao cargo de presidente pela legenda. O destino da medida pode ecoar sobre o candidato, uma vez que não há outros projetos semelhantes em tramitação em estados e no legislativo federal. Para divulgar a nova política, a Secretaria da Fazenda chegou a publicar um vídeo explicativo em suas redes sociais.
A necessidade de mudança de abordagem é defendida pelos atores na construção do conceito por trás da “Nos Conformes”. “Existe uma constatação geral, por conta de todos os operadores do direito tributário, que o sistema que a gente tem hoje não funciona”, explica Lina Santin, coordenadora do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV (NEF/FGV).
O professor da FGV Direito Eurico de Santi, que também participou da elaboração da lei, lembrou do conceito de Pirâmide de Conformidade, que tem como premissa incentivar e facilitar a operação de empresas que mantêm suas obrigações tributárias em dia, e usar a força da lei contra os chamados devedores contumazes. O artigo 1º da lei complementar, lembrou o professor, estabelece uma série de princípios norteadores para o qual as políticas de conformidade deverão ser pautadas.
O conceito norteador da lei recebeu elogios da classe advocatícia. “É um pouco prematuro dizer se a lei será boa ou não, mas o objetivo inicial é muito importante”, avaliou o sócio de tributário do Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados, Jayr Viégas Gavaldão Junior. O tributarista também aguarda a regulamentação, por entender que só assim a legislação poderá mostrar seu real potencial.
A lei complementar recebeu elogios também de representantes do Fisco. Para o presidente da Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (Afresp), Rodrigo Spada, a medida é essencial para quebrar antigos estigmas. “O Fisco acaba sendo visto hoje como carrasco e algoz pela sociedade, devido à legislação tributária complexa”, afirmou o representante. “Essa legislação dá as ferramentas para que o Fisco saia do paradigma de repressão e passe ao paradigma de prestação de serviço público e de orientação.”
Spada reconhece que lacunas devem ser preenchidas antes da total entrada em vigor da lei, na forma de regulamentação. O presidente da Afresp credita a reserva de parte da classe advocatícia ao fato de que o “Nos Conformes” ainda está em fase de regulamentação. A visão é compartilhada por Lina Santin. “O projeto está em fase de regulamentação, e às vezes tem gente dizendo que o projeto ‘é bom demais para ser verdade’”, ponderou.
Estado não deve ferir impessoalidade
Sócio do Advocacia Lunardelli, Pedro Guilherme Lunardelli elogia a preocupação do governo em reverter e diminuir o atual quadro do contencioso, mas também teme que a lei promova efeito contrário,causando a judicialização uma série de temas. Um dos primeiros pontos de discordância seria o prejuízo contraído pelos contribuintes na relação com fornecedores que possam ter histórico de má-fé. “Este é um tema pacificado nos tribunais superiores: o contribuinte não pode ser absolutamente impactado, na relação com o Fisco paulista, tomando em consideração o fornecedor”, afirmou Pedro.
O ponto que considerou mais problemático dentro da nova legislação, porém, seria uma “discricionariedade infundada e vinculada”, ferindo o preceito constitucional da impessoalidade (art. 37, em seu caput). “Se você de fato cumprir todas as suas obrigações acessórias e pagar todos os impostos, você terá direito a um Estado mais eficiente, ou a serviços menos burocratizados, procedimentos mais ágeis. Significa que quem não paga imposto vai ser apenado por um estado burocrata e lento”, afirmou.
O exemplo mais controverso apontado pelo advogado é o dispositivo de Análise Fiscal Prévia, previsto no inciso II do artigo 14 da “Nos conformes”. De acordo com o dispositivo, empresas listadas com as notas “A” e “A+” poderão pleitear que o Fisco paulista realize uma análise em suas operações, sem que eventuais problemas ou descumprimentos de legislação gerem autos de infração imediatamente, dando a chance da boa contribuinte efetuar reparos antes da fiscalização real.
A suposta falta de impessoalidade também é apontada por Jayr Viégas Gavaldão Junior. “Já da leitura da lei é possível constatar que há margem para uma discriminação séria, que pode violar alguns princípios, principalmente o da isonomia”, analisou. “Se o critério utilizado para discriminar contribuintes não for idôneo, acabamos entrando no campo da inconstitucionalidade, podendo a lei ser contestada”.