por Rejane Jungbluth Suxberger
Na semana que passou recebi assustada notícia pela mídia que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) firmaram um acordo a fim fazer um curso para magistrados sobre o enfrentamento da violência doméstica, com enfoque em técnicas e práticas de Justiça Restaurativa. Como é sabido, esse tipo de mediação pretende promover um novo modelo de justiça, que permita aos envolvidos reapropriar-se da gestão dos conflitos, com a intervenção de não profissionais.
A vítima e o ofensor, participam ativamente das respostas ao crime com o auxílio de um facilitador onde o diálogo representa a principal ferramenta capaz de solucionar as controvérsias entre interlocutores autônomos, com voz ativa e cientes da corresponsabilidade que os une em prol da efetividade do pactuado.
Como bem pontuado pela Criminóloga Soraia Rosa Mendes[1], “será possível falar em autonomia, voz ativa e corresponsabilidade quando o pano de fundo das demandas envolvendo violência doméstica que chegam ao sistema de justiça é todo um complexo de subjugação silenciador e impositor de uma responsabilidade unilateral da mulher na manutenção e preservação da conjugalidade? Ou, de um modo mais pragmático, será possível crer na criação de uma estrutura dialógica, capaz de cumprir todas essas promessas de respeito igualitário aos indivíduos se, passada praticamente uma década da Lei 11.340/2006, a implementação dos juizados especializados e o acolhimento multidisciplinar ainda são compromissos em aberto na maioria esmagadora dos estados da federação? (…).
Não se trata de ser contra esse tipo de modelo de solução de conflito, ou de pressupor erroneamente que a partir dele ocorreria a despenalização do agressor. Assim como, também não se trata de afirmar que o sistema penal e seus instrumentos representem um meio efetivo de proteção ou de prevenção à violência contra a mulher. Mas é preciso que efetivamente os juizados especiais para a violência doméstica e familiar funcionem.
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Que as experiências exitosas de trabalho em rede sejam a linha de orientação no trato com esses conflitos; que, dentre outras ações, os tribunais invistam tanto na estrutura física, quanto na formação em gênero dos/as magistrados/as com essa jurisdição; e que existam e sejam efetivos programas nos quais vítimas e agressores, desde suas diferentes posições gendradas, no tempo e espaço de cada um/a, possam ressignificar e superar as situações de violência vividas”.
Como podemos falar em mediação se ainda nos encontramos enraizadas em diferenças históricas de gênero? Ou pior, como podemos falar nesse tipo de justiça quando uma das partes, no caso a mulher, está em situação de hipossuficiência, de desigualdade com o outro. Será que foi aventado que a mulher será novamente inserida em num ciclo de violência? Que a mulher dessa vez será novamente vítima, mas agora do sistema de justiça? É jogar novamente no colo das mulheres a responsabilização pela preservação da família, ao invés de acolher e fortalecer essa vítima e cuidar do agressor para que ele entenda, assuma e se responsabilize pela violência praticada.
A preocupação com os números de processos não pode se sobrepor à resolução eficiente em temas complexos como o da violência doméstica. O direito precisa ultrapassar a soleira da casa, quando se trata dessa violência ainda invisível aos olhos da sociedade. São necessárias respostas que promovam o equilíbrio do poder e tragam consigo mensagens que alertem a percepção comunitária para a gravidade destes comportamentos.
É importante que o Estado e o sistema judicial não contribuam para formar o estereótipo de que a mulher é a responsável pela condução e fins do processo. Mesmo depois de tantas lutas e conscientização da igualdade de direitos e tratamento, ainda são presentes os resquícios do instinto dominador do homem em relação à mulher, tendo em vista a frequência em que este utiliza-se da violência para impor a ela seus posicionamentos.
Insistir em medições como estas significa manter o desvalor à violência contra a mulher, é deixar de tratar as condutas como crime para mantê-los como brigas familiares. Paremos de tentar “inventar a roda” em questões de violência doméstica e por consequência ultrapassemos a resistência na aplicação da lei. Sejamos eficazes, isso sim, na implementação de uma rede de assistência que incorpore mecanismos rápidos e seguros, com a revisão das políticas de abrigamento, acolhendo com dignidade e humanidade as mulheres.
[1] http://emporiododireito.
Rejane Jungbluth Suxberger, Juíza de Direito, titular da Vara de Violência Doméstica de São Sebastião. Próxima autora do selo Trampolim Jurídico. |