O Seminário Internacional Culturas Tradicionais e Populares e Justiça Climática – Diálogos Globais, Conhecimentos Locais recebeu nesta quinta-feira (18) o painel Patrimônio Cultural e Salvaguardas: Desafios e Possibilidades na Construção de Políticas Efetivas, na Chapada dos Veadeiros (GO). O encontro, mediado por Rafael Barros, diretor do Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular (CNFCP/Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), reuniu Mestres e Mestras, guardiões e lideranças culturais que trouxeram, com força e poesia, o recado de que salvaguardar o patrimônio cultural é inseparável da defesa da Mãe Terra e das comunidades que a protegem.

Com uma saudação à ancestralidade, o debate começou com um vídeo sobre o Bumba Meu Boi de Pindaré. Na sequência, Mestre Castro, descendente de angolanos e criado em comunidade quilombola, emocionou ao relatar sua trajetória, como um dos nomes mais tradicionais da manifestação no Maranhão: “comecei no tambor de crioula aos 6 anos e no Bumba Meu Boi aos 9. Desde 1960 mantemos o boi vivo, levando essa tradição pelo Brasil”.

Ao lado dele, Mestra Bita Roche, que também tem um papel importante no grupo, reforçou o papel da transmissão de saberes às novas gerações. “Preocupava-me que morreríamos sem deixar legado. Criamos o boi mirim e projetos para formar batuqueiros e cantadores”, contou. Para ela, a dimensão ritualística é inegociável: “o Bumba Meu Boi é tradição, fé e memória. Visitamos fundadores e mantemos trajes e músicas há mais de 60 anos, reconhecidos pelo Iphan e pela Unesco”.

Do Rio de Janeiro, Mestra Fatinha, figura central na cultura afro-brasileira, trouxe o testemunho do Jongo do Pinharal, tradição presente em quatro estados do Sudeste. “O jongo é herança dos negros escravizados, passado de geração em geração. Nós, mestres, somos bibliotecas vivas”, afirmou.

Ela destacou o papel da educação na valorização das culturas afro-brasileiras e no fortalecimento da autoestima da juventude preta. Entre conquistas recentes, citou a criação de um parque para sediar o futuro Museu do Jongo e a disponibilização de um acervo digital. Mas também cobrou: “precisamos de apoio mais efetivo do Iphan e de políticas acessíveis às comunidades”.

A diretora-executiva do Ponto de Memória Museu do Taquaril (MG), Leila Regina da Silva, defendeu a importância das comunidades serem protagonistas de suas narrativas. “Não queremos ser contados por terceiros. No Taquaril, nosso patrimônio está nas vivências cotidianas e nas lutas coletivas”, disse.

Ela fez um alerta sobre as ameaças ambientais: “a mineração coloca em risco nosso território. Resistir é também defender nossa memória”. Para Leila, os pontos de memória articulam-se hoje em defesa da justiça climática e contra o apagamento das histórias populares, em diálogo com agendas globais como a COP30.

Maria Alice Pereira da Silva, guardiã da Pedra de Xangô (BA), apresentou os conceitos de governança espiritual e Axeceno. A primeira foi definida como “tecnologia ancestral, enraizada nas práticas ritualísticas de povos originários e comunidades tradicionais, onde toda ação coletiva parte do diálogo com o plano espiritual”. Em outras palavras, antes de qualquer obra, projeto comunitário ou decisão política, deve haver consulta ao sagrado — orixás, caboclos, inkices e encantados.

Já o Axeceno surge como contraponto ao Antropoceno, propondo caminhos decoloniais que integrem patrimônio, urbanismo e ecologia. É o “tempo do axé”, que, como destacou uma das falas, “propõe normas do poder do axé para um novo pacto entre cultura e natureza”. A ideia resgata práticas há séculos realizadas por terreiros, quilombos e aldeias indígenas: cuidado com rios, matas, solos e territórios como parte de uma visão espiritual do mundo.

“Quem mais cuida da Mãe Terra é quem está sendo mais afetado pelas mudanças climáticas”, alertou.

O presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Leandro Grass, destacou a necessidade de fortalecer a institucionalidade da salvaguarda cultural. Reconheceu avanços, como o aumento do orçamento para bens imateriais (de R$ 1,6 milhão para R$ 20 milhões) e a retomada de políticas como Cultura Viva e do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, paralisado desde 2015. Também ressaltou recentes reconhecimentos, como os saberes das parteiras, o samba de bumbo paulista e o choro.

Ainda assim, não deixou de apontar desafios: falta de servidores, resistência em governos locais e a urgência de aprovar o plano de carreira dos profissionais da cultura.

Ao final de sua fala, Leandro homenageou os mestres, caraceterizando-os como símbolos de resistência e sabedoria. A troca de saberes entre gerações foi comparada à fertilidade de um abacateiro: “um fruto que alimenta pessoas, solo e pássaros”.

Proteção de culturas tradicionais ganha perspectivas globais

O terceiro painel apresentado nesta quinta teve como tema Experiências Internacionais sobre a Proteção das Expressões Culturais Tradicionais, Conhecimentos Tradicionais e Culturas Populares. A mesa trouxe exemplos de políticas e iniciativas bem-sucedidas em diferentes países, reforçando a importância do intercâmbio internacional para a preservação de saberes ancestrais.

Mediado por Carolina Miranda, coordenadora-geral de Negociação Internacional do MinC, o debate contou com representantes de comunidades e órgãos de patrimônio de Cabo Verde, Paraguai, Austrália e Brasil. Daiane Santos, quilombola da Comunidade Baú (MG); Sónia Duarte, Instituto de Gestão da Qualidade e Propriedade Intelectual (Cabo Verde); Claudia Pamela Cristaldo, Dirección Nacional de Propiedad Intelectual (Paraguai); e Patricia Adjei, Trade Agreements and Indigenous Knowledge Section – IP Australia, foram as integrantes da mesa.

O painel discutiu a proteção intelectual de conhecimentos e expressões culturais tradicionais, reforçando que povos e comunidades tradicionais são, também, os principais protetores do meio ambiente. “A proteção dessas comunidades não apenas preserva a cultura, mas também garante o manejo ambiental”, explicou.

Apesar das diferenças geográficas, os desafios se repetem. Ameaças à segurança territorial, apropriação indevida de saberes e falta de participação efetiva nas decisões sobre políticas culturais são comuns nos quatro continentes representados.

Na Austrália, Patrícia Adjei destacou que os povos indígenas representam apenas 3% da população, com 250 grupos linguísticos diferentes, e que não existe legislação específica para proteger seus conhecimentos tradicionais e coletivos. “Temos visto muitos exemplos de apropriação indevida e de mau uso da nossa cultura. Produtos com desenhos indígenas são falsificados e vendidos como lembrancinhas para turistas, sem beneficiar as comunidades. É uma questão complexa que exige educação do consumidor e muitas pessoas na mesa para pensar soluções”, explicou. Ela lidera um grupo de trabalho com prazo de quatro anos para criar a legislação, incluindo proteção de expressões culturais e do turismo indígena.

Já no Paraguai, Claudia Pamela Cristaldo contou que, desde 2019, foi criado um time institucional envolvendo agricultura, educação, povos indígenas e grupos locais para desenvolver um projeto de lei que proteja conhecimentos tradicionais, medicina tradicional e manejo do solo. “A motivação veio de casos de apropriação indevida. Nosso desafio agora é chegar a todas as comunidades e garantir que a lei efetivamente as proteja”, disse.

Enquanto isso, no Brasil, o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Direitos Autorais e Intelectuais (SDAI), atua na construção de um Marco Legal sobre a Proteção dos Conhecimentos Tradicionais e Expressões Culturais e Populares. Essa proposta foi levada a debate no Grupo de Trabalho responsável pela construção da Política Nacional para as Culturas Tradicionais, que é coordenado pela Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, com a participação de 18 ministérios e a sociedade civil. A proposta busca estabelecer um conjunto de medidas para fortalecer a salvaguarda dos conhecimentos e práticas culturais de comunidades tradicionais.

A minuta prevê mecanismos como cadastros públicos, fundos de apoio e definições claras de propriedade intelectual, garantindo que as comunidades sejam protagonistas na definição das regras. “Não podemos proteger efetivamente sem ouvir a voz de quem mantém os saberes vivos”, afirmou a mediadora do painel.

O debate reforçou ainda a importância de cooperar internacionalmente, trocar experiências e adotar políticas que reconheçam a diversidade cultural como patrimônio da humanidade, garantindo que tradições e modos de vida continuem a existir em seus territórios e no mundo.

Sobre o Seminário Internacional

O evento é uma realização do Ministério da Cultura (MinC), do Instituto Federal do Rio Grande do Norte e da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Governo do Distrito Federal.

A programação faz parte do 25º Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros e segue até sábado (20), reunindo nove painéis temáticos, além de rodas de conhecimento e prosa, oficinas, feiras, exposições e apresentações musicais. Os debates destacam a valorização das culturas tradicionais, a proteção do patrimônio imaterial e os desafios das comunidades diante das mudanças climáticas, em um momento de preparação para a COP 30, programada para novembro.

O seminário busca promover diálogo entre saberes locais e experiências internacionais, aproximando pesquisadores, mestres de cultura popular e representantes de comunidades tradicionais para fortalecer políticas públicas e estratégias de preservação cultural e ambiental.



Fonte: Ministério da Cultura