A defesa dos territórios pelas comunidades tradicionais frente a ameaças ambientais, econômicas e políticas e a proposta de integração de saberes na Escola das Marés e das Águas, com o reconhecimento de mestres e mestras das marés e das águas, foram temas de painéis nesta sexta-feira (19) no Seminário Internacional Culturas Tradicionais e Populares e Justiça Climática: Diálogos Globais, Conhecimentos Locais. Os debates na Vila de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros (GO), reuniram representantes destes grupos, de universidades e especialistas.
Com mediação da antropóloga e gestora cultural Joana Corrêa, a mesa Povos e Comunidades Tradicionais e Defesa do Território trouxe um olhar sobre a lutas dos povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, extrativistas, entre outros, na proteção de seus territórios diante de ameaças ambientais, econômicas e políticas.
A meta foi evidenciar o papel dessas comunidades na conservação da biodiversidade e no enfrentamento da crise climática, bem como denunciar as violações de direitos e práticas predatórias que impactam suas vidas. A discussão também mostrou como esses grupos estão liderando processos de resistência e propondo alternativas sustentáveis
“A violência em relação aos povos e comunidades tradicionais se dá desde o Brasil Colônia e vem acompanhada de outros tipos de agressões. Além da expulsão da terra e da violência física, os silenciamentos, a falta de escuta, o não reconhecimento, a privação dos direitos à adversidade e suas formas de existência. Esse painel não fala só da terra e do território, mas dele como lugar que abriga o sagrado, os encantados, como lugar de saúde, de segurança alimentar, com o direito a existir de formas diferentes, a construir modos coletivos de vida, a praticar formas culturais diversas”, explicou Joana.
Originária do território quilombola Kalunga, a secretária de Turismo, Cultura e Meio Ambiente de Cavalcante (GO), Natália Moreira dos Santos Rosa, lembrou o empenho de sua comunidade na defesa da terra.
“Quando começou a luta pela regularização fundiária, em 1985, ocorriam muitas ameaças e ataques. Então, foi criada uma associação chamada Povo da Terra. Até então a gente não sabia que tinha direitos, apenas deveres”, contou.
Representante da comunidade quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, em Minas Gerais (MG), Makota Kidoialê destacou a importância da defesa do território e as conquistas obtidas pelos moradores .
“A única coisa pela qual que nós lutamos hoje é pelo direito de nos alimentar. E isso a terra nos dá condições. Então, não tenham receio de reivindicar. Conseguimos o acesso à cultura, criamos uma quilomboteca, a Roça Literária, temos um projeto de educação infantil e estamos desenvolvendo um projeto de cinema quilombola. Também prestamos monitoria e assessoria a mais de 180 mulheres negras, indígenas e LGBT para que elas percam o medo e cheguem à universidade, porque esse lugar também é nosso”, frisou.
Em sua participação, a integrante do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma), Kota Mulanji, salientou a importância da soberania alimentar para esse grupo.
“Nós temos um sistema alimentar que tem os alimentos adequados e nos mantém vivos. Aquilo que nós comemos fora da nossa unidade territorial tradicional nos faz mal. Tem açúcar, tem sal. A única comida que nos salva é qual? É o dendê, o feijão fradinho, o milho. Nós precisamos recuperar uma parte desse sistema, que é a soberania alimentar. Então, o primeiro território que temos que defender é a vida. E por isso a alimentação é fundamental”, justificou ela no painel que também contou com a presença da integrante da Frente Cultura e Patrimônio do Fórum de Comunidades Tradicionais (Serra da Bocaina/RJ), Ana Carolina Santana Barbosa.
Conhecimentos
O encontro abordou ainda a Escola das Marés e das Águas, iniciativa que visa integrar conhecimentos populares, com foco no reconhecimento dos seus mestres e mestras.
A articuladora da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem), Kátia Barros, explicou o conceito do projeto.
“A escola surgida em 2023 busca construir cursos de formação ou graduações ou capacitações no tempo da maré, aquele que respeita as várias formas de vida e de viver. Ele leva em conta o tempo de pescar, de celebrar de acordo com a sua fé, com a sua maneira de pensar a vida, com seus valores. A escola das marés e das águas tem buscado formação formal, mas sempre levando em conta que ela precisará ser feita nesse tempo, que é o tempo da vida das comunidades tradicionais na Zona Costeira e na Zona Marinha”, contou ela.
O mestre José Alberto Ribeiro, o Beto Pescador (CE), também da Confrem, realçou a importância da Escola das Marés.
“Para nós pescadores e pescadoras é um desafio cursar uma faculdade. Primeiro porque os tempos da maré, os tempos dos nossos modos de vida, muitas vezes não é o tempo da universidade. Mas também, a gente acredita muito, em sempre lançar uma rede num local positivo, que tem peixe, ou em um local que tem marisco, sempre na busca de mudar a realidade. Esses conhecimentos que os nossos pais, nossos avôs passam para nós, a gente não aprende na faculdade. Mas podemos levar isso até ela. Essa troca é muito importante. Esse conhecimento tradicional, o nosso modo de vida, em conviver com a natureza, em respeitar as nascentes, os manguezais, a diversidade, esse é um dos principais, ou o caminho certo, para termos um mundo sustentável, sem crises climáticas”, observou.
Reitor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Hidelbrando dos Santos Soares salientou o papel da instituição em relação aos saberes ancestrais, populares e tradicionais e do reconhecimento.
“Já existe hoje nas universidades públicas a crença que é preciso assegurar que essa sabedoria popular possa ser difundida e preservada. Este conhecimento pode ser base para respostas que nós estamos buscando, como a crise social e a climática. É preciso não somente valorizá-la, mas garantir a sua difusão. Só é possível fazer isso em grande escala ao torná-la também política pública. Tem que fazer isso, tem que estar no orçamento, porque a sabedoria popular é o povo no sentido mais profundo do seu significado”, comentou.
Também participaram da mesa o mestre Ananias Nery Viana (BA) e a mestra Josenilde Ferreira Fonseca Carlos (CE), ambos da Confrem, e o vice-reitor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Paulo Henrique Aragão Catunda. A mediação ficou a cargo de Erika de Almeida Gustavo, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Diálogo
Promovido pelo Ministério da Cultura (MinC), por meio da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC), o Seminário, que se estende até sábado (20), é um espaço de diálogo sobre as relações entre as culturas tradicionais e a justiça climática. Participam mestras, mestres, grupos culturais, gestores públicos e pesquisadores culturais do Brasil e de países como México, Peru, Paraguai, Uganda, Cabo Verde e Austrália.
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O Seminário integra o 25º Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, realizado simultaneamente. Veja aqui a programação completa
Realização
O Seminário Internacional Culturas Tradicionais e Populares e Justiça Climática é uma realização do MinC, do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, da Casa Cavaleiro de Jorge, com o patrocínio da Caixa Econômica Federal e o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Governo do Distrito Federal.
Fonte: Ministério da Cultura