Oito artistas visuais do Distrito Federal ficaram diante de um desafio inusitado: criar uma obra de arte que dialogasse com os cânones morais que envolvem historicamente o vestido de noiva. A provocação veio de projeto “Vestígios de Noiva”, patrocinado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC), que selecionou publicamente as melhores propostas submetidas numa chamada aberta a criadoras do DF e Entorno.
O resultado é um rico universo de visões e estéticas sobre o olhar feminino e feminista dessas criadoras a partir de estigmas que rondam a peça de figurino, símbolo central do casamento. As obras entram em exposição, de 20 de janeiro (abertura às 19h) a 21 de fevereiro de 2025, na Sala de Exposições do Centro Cultural Sesi de Taguatinga (QNF 24).
Acesse o antes e depois dos vestidos de noiva
Antes de chegar à galeria, os vestidos-obras integraram um desfile-manifesto no Centro de Taguatinga, em 19 de dezembro de 2024. “O enfrentamento a esse símbolo que ainda chega ao século 21 impregnado de ideologias machistas, misóginas e patriarcais foi o mote criador dado a essas artistas inquietas. Agora, olhando cada uma das peças confeccionadas, o espectador vai repensar todas essas questões de forma frontal”, aponta a artista visual, Astaruh Lira, gestora do projeto. A produção e concepção é do coletivo Criaturas Alaranjadas.
O empoderamento feminino foi uma das questões que apareceram no vestido-obra da artista Carmen San Thiago, que transformou um vestido tradicional tomara que caia, com bordados de canutilhos e miçangas, num chamado para o exercício do poder feminino, tendo o palito de fósforo como um elemento de ação. A obra “Arriscar” puxa o elemento fogo como uma alegoria para a autonomia feminina.
Multi-artista venezuelana, radicada em Brasília, Fabs! apresentou o vestido-obra “Os Contos de Fadas são Contos de Fadas” como uma provocação ao arcaico papel de submissão da mulher. O vestido de noiva, com decote em “v”, justo ao corpo e de aplique de rendas, virou um manifesto feminino e feminista, quebrando a ideia de objetificação desse figurino associado à repressão e à idealização romântica da mulher. A artista aplicou lágrimas de sangue na parte frontal e, na saia, escreveu as frases como “virgindade é uma construção social”, “não é não”, “não sou obrigada”, “não vou me calar” e “não sou propriedade”.
Os mitos da virgindade e da gravidez antes do casamento nortearam os trabalhos de Christiane Contreiras e Suyan de Mattos. Enquanto Christiane, em “Sonhos Atados”, propôs o vestido de noiva adaptado para a imagem de uma noiva grávida, a partir de intervenção com ataduras de gesso; Suyan trouxe, em “Euforia do Prazer (ou a Alforria do Sexo Original)”, uma divertida alegoria sobre a liberdade sexual das mulheres com apliques de órgãos sexuais estilizados e palavras consideradas pela sociedade conservadora como “obscenas” ao comportamento feminino de épocas passadas.
As reflexões sobre o feminicídio ressaem no vestido-obra de Luara de Paula, Em “Imaginação Bálsamo”, a artista construiu uma delicada teia de feridas e carepas bordadas em linhas vermelhas, deixando a obra com a sensação de estar “em carne viva”. Júlia Gonzalez, a partir da teatralidade e do humor, criou o “Baubo”, uma referência à deusa grega protetora dos ventres e das obscenidades. O vestido, na visão frontal, tem círculos de alvo em vermelho e, com a aproximação física e ameaçadora do masculino (voraz e estuprador), revela-se, debaixo da saia, a imagem da deusa pronta para contra-atacar com sua língua imensa que se remete à vagina.
As relações do feminino com o poético vieram com força nas obras de Eliane Teixeira e Triz de Oliveira Paiva. Eliane propôs a obra “Linhas e Fios Poéticos”, que ocupa o vestido de noiva simples com decote em v, mesclando pombas de diversos tamanho ao longo do vestido. Nas costas, costurou cordões de lã vermelha com palavras de um poema que fala de liberdade, amor próprio e autonomia. Triz de Oliveira Paiva utilizou o elemento barro em “Hey de Partir”, para, com as mãos, cobrir a saia do vestido criando a relação feminino e natureza.
“É impressionante ver essas concepções em cima de vestidos de noivas comprados em brechós ou diretamente de suas donas. Essas criações de alguma maneira seguem uma história que existiu sobre esses figurinos, do qual não sabemos a intensidade de alegrias, frustações, dores e amores colocados em cada um deles”, pontua Astaruth Lira, que. como artista PCD, fez questão de colocar cotas para selecionar artista visual com deficiência, garantindo no projeto essa inclusão.
Serviço
Vestígio de Noiva
Exposição coletiva de oito vestidos-obras criadas pelas artistas Carmen San Thiago, Christiane Contreiras, Eliane Teixeira, Fabs!, Julia Gonzales Martins, Luara de Paula, Suyan de Mattos e Triz Oliveira Paiva. De 20 de janeiro a 21 de fevereiro, de segunda a sexta, das 9h às 18h. Sala de Exposição do Centro Cultural Sesi Taguatinga (QNF 24). Classificação indicativa: 16 anos. Entrada franca.
Artista/vestido-obra
Carmen San Thiago/Arriscar
Carmen San Thiago é nascida em Porto Velho, Rondônia, e está radicada em Brasília desde 1991. Graduada em artes visuais é também artista multilinguagem trabalhando no audiovisual e design gráfico. A obra “Arriscar” é uma alegoria ao poder da chama do poder feminino, tendo o palito de fósforo como um elemento de ação. A artista aplicou num vestido tradicional tomara que caia, com bordados de canutilhos e miçangas. Na parte frontal superior, há uma pintura de um palito de fósforo e, na saia, uma caixa de fósforos aberta, com o símbolo da luta feminista, uma mão em punho fechado na cor lilás. Abaixo, está aplicada a frase: “a chama do fósforo que nutre a alma de energia”. Nas costas, há a pintura de dois palitos de fósforos, uma em chama e outro apagado. O vestido tem uma cauda alongada que foi tingida de vermelho, amarelo e laranja simbolizando as cores do fogo com a frase “acenda a sua chama do poder”. Ao lado da obra, ela reproduziu a caixa de fósforo de símbolo feminista.
Christiane Contreiras/Sonhos Atados
Christiane Contreiras é artista visual brasiliense que aprendeu a pintar com a sua mãe. Tem exposições individuais e coletivas no Brasil e exterior. A obra “Sonhos Atados” faz uma intervenção com ataduras de gesso em vestido de noiva tomara que caia, estilo tradicional, com miçangas na altura do busto e da cintura. A artista cria uma barriga de gravidez num diálogo com a maternidade solitária. Presos às costas, balões de atadura simbolizam os sonhos que não tiveram voos. Um buquê estilhaçado lança as flores na parte posterior do vestido e ao chão da galeria.
Eliane Teixeira/Linhas e Fios Poéticos
Eliane Teixeira é artista visual mineira radicada em Brasília desde 1971. Executa uma pesquisa afetiva com execução de bordados. A obra “Linhas e Fios Poéticos” ocupa o vestido de noiva simples com decote em v, com faixa bordada na cintura mesclando pombas de diversos tamanho ao longo do vestido. Nas costas, costurou cordões de lã vermelha com palavras de um poema que falam de liberdade, amor próprio e autonomia.
Fabs!/Os Contos de Fadas São Contos de Fadas…
Fabs! é multi-artista visual venezuelana radicada em Brasília desde 2018, atuando também em arte circense e produção cultural. A obra “Os Contos de Fadas são Contos de Fadas” transforma o vestido de noiva com decote em “v”, justo ao corpo de mangas longas e aplique de rendas, num manifesto feminino e feminista, quebrando a ideia de objetificação desse figurino associado à repressão e idealização romântica da mulher. A artista aplicou lágrimas de sangue na parte frontal e na saia escreveu as frases “virgindade é uma construção social”, “não é não”, “Não sou obrigada”, “não vou me calar” e “não sou propriedade”. Nas costas, instalou um par de asas de anjo, com adereço de correntes. Alongou as mangas.
Julia Gonzales Martins/Baubo
Radicada há 30 anos em Brasília, Julia Gonzales Martins é nascida em Belém do Pará, com pesquisa, nas artes visuais, que transita pelo bordado, argila, escultura e desenho. Formada em artes visuais pela Universidade de Brasília (UnB), Julia cria para o projeto Vestígios de Noiva a obra “Baubo”, uma referência à deusa da mitologia grega, que simboliza o ventre, o riso e a obscenidade. A peça ganha um dinamismo ao dialogar com essa entidade que levantava a saia e mostrava a vulva. O vestido de noiva é tradicional e estilo princesa, com busto com aplique de renda e miçangas. No busto esquerdo, há um bordado em linha vermelha formando um alvo circular, que se repete em toda extensão do vestido (frente e costas) em circunferências de tamanhos diferentes. Na parte interna da saía do vestido, ela reproduziu a imagem da deusa Baubo com rosto marcante, caninos aparentes e língua almofadada colocada para fora.
Luara de Paula/Imaginação Bálsamo
Luara de Paula tem formação em artes visuais pelo Centro Universitário de Belas Artes em São Paulo. Possui pesquisa em artes manuais, com destaque para o bordado. A obra “Imaginação Bálsamo” constrói ao longo do vestido de noiva feridas e carepas bordadas em linhas vermelhas. O vestido branco, estilo clássico grego, de ombro único é bordado com pedrarias e miçangas vermelhas cor de sangue criando fendas e alastrando feridas ao longo da peça.
Suyan de Mattos/Euforia do Prazer (ou Alforria do sexo original)
Carioca radicada em Brasília, Suyan de Mattos é artista visual, curadora e coordenadora de coletivos artísticos. Tem carreira internacional e dialoga, em suas obras, com temas urgentes e contemporâneos, com pesquisa no erótico. A obra “Euforia do Prazer (ou Alforria do Sexo Original)” aplica num vestido simples com aplicação em bordado nas cores azul, rosa e verde. Na saia toda envolvida por linhas bordadas e coloridas, aplicou imagens de membros das genitálias humanas com a pujança de cores, humor e ousadia.
Triz Oliveira Paiva/Hey de Partir
Triz Oliveira Paiva, brasiliense de carreira itinerante nacional, artista visual autodidata e transdisciplinar, que faz uma pesquisa do jardim e as suas profundezas. Com as mãos sujas de barro a partir da saia, ela ocupa o espaço expositivo do vestido branco justo, de renda transparente com várias texturas, com renda, bordados e pequenas pérolas. Há um broche com pedrarias acima do busto envolvido com transparência. A artista cria dualidades entre o feminino e a natureza. A obra “Hey de Partir” faz sobreposição de camadas de barro e questiona a obra tradicional, propondo a escultura às avessas.